quarta-feira, 30 de junho de 2010

Chuva na berlinda

Seria a chuva malfazeja, intratável, meliante, recalcitrante? Seria ela a grande culpada por tantas mortes, tantas lágrimas e lástimas? Todo inverno é assim, ela aparece para absolver os pecadores, apedrejada e crucificada vai levando a culpa pela tragédia urbana que vivenciamos. É muito cômodo afirmar que a chuva tem vontade própria. Seres humanos também têm.

Não foi a chuva que empurrou contingentes populacionais pobres para os morros ou para as margens dos rios nos processos de urbanização, tanto das metrópoles como das pequenas cidades. Não, não foi ela.

Não foi a chuva que alterou o ecossistema, não foi ela que poluiu os rios, pelo contrário, ela foi poluída: chuva ácida. E sua acidez se tornou moral, estigmatizada, nas palavras de Goffmam um estigmatizado é alguém poluído moralmente.

Alguns de nós, pseudo-conscientes, argumentamos que a população pobre joga lixo nas encostas e barreiras. Com aquela nossa carinha de desaprovação afirmamos que isso é cultural, é preciso promover uma “conscientização”. Quando na verdade, esquecemo-nos que a elite, bem-cheirosa e educada, cuidou de higienizar a cidade, jogando para o morro o que ela considerava mais sujo: os trabalhadores, aqueles que suavam, e limpavam a sujeira da elite. Estes sim, foram jogados embaixo dos tapetes. A urbanização cuidou de fichar prostitutas, ora nas delegacias de costumes, ora sendo tratadas como caso de saúde pública. Moral e higiene andando lado a lado.

Será que a chuva é culpada, pela mulher clandestina, que não tem o CPF porque é caro, e por isso não registrou os filhos, o que impede de se inscrever no bolsa família, que faz faxina, mas não tem carteira assinada, que não passou da quarta série, pois veio do interior para trabalhar na casa de família e não para estudar, que mora na beira do precipício, no barraco que chama de próprio (pois comprou por dois mil reais, é próprio)? Se clandestina é a sua própria vida, também será a energia e a água do fio e do cano improvisados.

Enquanto apontamos para os aterros de lixos nas encostas, esquecemos dos nossos próprios hábitos de jogar lixo nas ruas. Creio que advenha dessa ideologia burguesa de que na rua fica tudo o que “não presta”, mendigos, meninos de rua, mulheres da vida, vagabundos, ladrões... Irrita-me, mas não me surpreende, pessoas jogando lixo na rua de dentro de carros e coletivos, jogando no chão ao lado da lata de lixo. São as mesmas pessoas que ficam ilhadas com os alagamentos. Mas a culpada é a chuva. Falta de saneamento, drenagem, pavimentação, nada disso conta nessas horas, apenas a maldita chuva.

Como algo que acalentava meus sonhos, que meu pai chamava de seresteiro, foi se tornando tão cruel, o monstro que sai de baixo da cama e invade a casa? Fico com a frase de Brecht que fala de violência, e como falar de urbanização sem falar de violência? O que chamam fatalidade eu denuncio violência!

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem” Brecht

Arca de Noé, 30 de Junho de 2010

6 comentários:

  1. Adoro essa frase de Brecht, pessoalmente ela me diz muito, e neste caso da chuva é super emblemática para a questão.

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  2. Massa nega! Essa habilidade que o ser humano tem de procurar culpados. Essa habilidade que a elite tem de culpar e marginalizar quem limpa a casa dela, lava sua roupa, faz a sua comida, dirige o seu carro e ainda joga lixo nas ruas .. rsrs Vc conseguiu descrever isso de maneira brilhante!

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  3. ta na hora do Rio tomar o rumo contrário nessa história e arrombar as margens da burguesia para que o todos tenham direto ao acesso a cidade com dignidade.

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  4. ta na hora do rio tomar o rumo contrário nessa história e arrombar as margens da burguesia para que o todos tenham direto ao acesso a cidade com dignidade.

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  5. Qualquer coisa se torna um bode expiatório para o capital!

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  6. Arrasooo tati! Culpabilizar a chuva pelas mazelas sociais está quase se tornando uma tedencia...todo ano é a mesma coisa....=)

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