domingo, 13 de junho de 2010

Sobre uma ética feminina

Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir? Diz a canção. Concordo em gênero, número e grau. Cotidianamente me deparo com algumas situações que rodeiam o mesmo tema, a mentira, não qualquer mentira mais mentiras que apenas as mulheres contam.

Esta semana, uma amiga me contava que sentia remorso por esconder da mãe que passaria um final de semana com o namorado, a outra lamentava de nunca ter podido dividir com a mãe aspectos sobre a sua vida sexual, e uma outra amiga que comentava que sua mãe sabia de tudo, mas, seu pai não. Pois bem, quatro mentirosas. Você pode me perguntar “Mas, não eram três amigas, porque 04 mentirosas?” Você pode até achar que eu seria a quarta mentirosa, apesar de também ser mentirosa, não é de mim que estou falando, não diretamente, acredite ou não. A quarta mentirosa é a mãe da nossa amiga, ou no popular a alcoviteira.

Mentir embora seja uma opção, é quase uma imposição. Friso bem o quase, pois a atmosfera em que nós mulheres estamos submersas quase nos aniquila as possibilidades. Optar por dizer a verdade é um risco, a dúvida é o preço da pureza, não é o que diz uma outra canção? E, é inútil ter certeza. Arriscar-se a perder a confiança de quem deposita em nós todas as expectativas de moralidade, de quem sabe melhor que nós que esta moralidade é uma imagem de fotografia na sala da casa.

Voltando as mentirosas, passemos os olhos na quarta mentirosa: a alcoviteira. Ela mente para o marido escondendo as safadezas da filha. Ela que já foi filha. Ela que já sabe bem o que é mentir. Fingir que não gosta de sexo, e depois fingir que sente prazer, paradoxal não? Ouvir e aconselhar: ela também pode optar a mentir para a filha “somos mais controladas que os homens, é da natureza deles ser assim, e é da nossa natureza ser assado, você pode e deve se manter pura e casta até o casamento”, mas, e isto ainda existe? Existe. Ela pode ainda optar por dizer a verdade, numa cumplicidade a duas “tome os devidos cuidados, você não pode engravidar, se não todo mundo vai saber”. Se a igreja conseguisse proibir os contraceptivos como consegue que o Estado proíba o aborto, teríamos, com certeza um novo tráfico, o tráfico de camisinhas.

Também me lembrei de outra mentirosa, ela fez um aborto, tomou um remédio e teve uma hemorragia violenta, no hospital, a enfermeira desconfiou do que se tratava, a menina mentiu. Mas, não teve jeito uma mentirosa reconhece a outra, a diferença é que as vezes nos deparamos com alcoviteiras e em outras com figuras penosas moralizadoras carrascas de si e de todas. A enfermeira num ímpeto de violência negligenciou a nossa amiga mentirosa, que pra ela agora era mais que isso era uma criminosa. E a enfermeira quem era? Juíza e algoz, julgou, condenou e ela mesma aplicou o castigo.

Marilena Chauí fala em determinada obra da violência que nós mulheres vivenciamos desde que nos entendemos por gente, essa violência por vezes silenciosa e surda: opressão, essa violência que até nós mesmas mulheres compactuamos, ela nos é tão íntima, que tomamos para nós. Julgamos nossas irmãs, suas roupas, seu corpo, seu ir e vir, sua liberdade. Participamos da animalização do nosso gênero nos comparando com as mulheres galinhas, as vacas, as piranhas.

Algumas mulheres mentem tanto que chegam a acreditar na própria mentira, sob o fetiche da moralidade se acham diferentes umas das outras. Assumem o debate medíocre de identidade, não sou freira, nem sou puta, nem mãe-esposa... Ora sou mulher, mas que isso sou humana, mas enquanto for tratada como mulher, reivindicarei como mulher. Enquanto nos impuserem modelos de comportamento moralizante, mentiremos, enquanto utilizarem a “verdade” como dom de iludir, iludiremos. Querem santas? Terão, nós santinhas do pau oco!


Jardim do éden, 13 de junho de 2010

5 comentários:

  1. A hipocrisia reinante é a ordem do dia.
    Se ser mulher é difcil é viver tendo que mentir imagina ser um lesbica imcubada e no caso da travesti? aí mesmo que a metira tem perna curta.
    O bom da travesti é isso ela escandaliza, não tem como se esconder-se atras de mentiras, por isso que a sociedade a rejeita com tanta força.
    Ela não se enquadra em papel nenhum pré estipulado por uma sociedade hipocrita como a nossa.
    Que tal escandalizarmos e rirmos da hipocrisia?

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  2. Hummm, a mentira é escudo, é compreensível e até certo ponto é sinal de rebeldia... mas o escândalo é resistência, é negação, é rompimento, e claro, necessita que estejamos num processo de consciência mais desenvolvido, é preciso correr o risco. Porém, como todo processo de consciência é dialético, tem horas que consiguimos romper de forma escancarada, em outras de de forma velada... uma pena que algumas mulheres, nem ísso...

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  3. Dentro de uma perspectiva estratégica de ruptura a mentira se situa dentro da conspiração clandestina e consciente.
    O momento de preparação para o assalto.
    Então, de início, vamos mentir sem culpa.

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  4. Me lembrou um poema de Elisa Lcinda...
    Aviso da Lua que Menstrua

    "(..)Cuidado, moço
    às vezes parece erva, parece hera
    cuidado com essa gente que gera
    essa gente que se metamorfoseia
    metade legível, metade sereia.
    Barriga cresce, explode humanidades
    e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
    mas é outro lugar, aí é que está:
    cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
    Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
    que vai cair no mesmo planeta panela.(...)"

    =*

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  5. Vivemos em um grande palco, onde ninguém sabe, e nem deve saber, quem é o quê. O grande nó é quando as marias-ninguém resolvem ser alguém, e não só alguém, mas MULHER. É este o preço exorbitante que pagam aquelas que tentam desmontar o palco...O que nos resta? FORÇA, para segurar os destroços do teatro que desconstruimos diariamente.

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